quinta-feira, 19 de dezembro de 2013

Sapatilhas, lanches e a segurança do olhar.


Aquela manhã começou com o poema da Cora Coralina, lido pela diretora da escola. Collants, saias, meias-calças e sapatilhas, com pequenas bailarinas dentro, alinhavam-se em duas fileiras, sentadas no chão. Olhando pelo grande espelho da parede da sala, podiam ser vistos pais, mães, avós, tios, irmãos e primos, sentados em colchonetes ou de pé, nos cantos da sala, tentando arranjar o melhor ângulo para seus olhares atentos e também para os flash e lentes de suas câmeras.

A mais nova da turma estava de maria-chiquinha, porque, por mais que ela desejasse, diariamente, que seu cabelo estivesse tão longo como de suas amigas, as volumosas madeixas ainda não davam conta de formar um coque, daqueles redondinhos no alto da cabeça. A meia-calça fina fazia sua estreia nas pernocas fofas e sofreu de medo da cadela da família, doida pra pular e brincar com a pequena bailarina, quando saía de casa.

Quando a música começou, saindo das caixas de som da academia, uma sensação de nostalgia me preencheu por completo. Voltei 17 anos no tempo e lembrei-me de como a brincadeira de dançar era coisa séria pra mim. Bolhas nos pés, caixas de grampo de cabelo e coleção de polainas; aulas de alongamento, exercícios na barra e provas individuais na frente do resto da sala; corpo alongado, queixo pra cima e movimentos leves; a vontade de fazer melhor, mais rápido e com mais perfeição.

Ver Luna naquele grupo de pequenas bailarinas encheu meu coração de ternura. Lembrei os olhares e sorrisos da minha mãe, que me acompanhou durante os três anos de dança, em todos os festivais, apresentações e mostras das quais o grupo da academia participou. Com os dois pés na adolescência, em alguns momentos eu senti vergonha de ter a mãe tirando mil fotos, perguntando se eu estava com fome, se eu estava com sede, e mesmo me elogiando na frente de outras pessoas. Adolescente é um porre!

Agora eu era espectadora, olhares fixos na cria. Mas eu também recebia os olhares de Luna, conforme fazia os exercícios e passinhos mais infantis possíveis; ela olhava pra mim com um sorriso tímido, e acho que conseguia ver meu rosto todo iluminado de orgulho, pelo simples fato dela estar ali, fazendo o seu melhor, junto com as amigas. Percebi que, anos atrás, enquanto eu dançava, o corpo, o suor e os movimentos eram meus, mas a presença da minha mãe e aquele olhar que me seguia pelo palco eram a minha segurança. O dinheiro gasto com roupas, fantasias, maquiagem, inscrições, boletos de mensalidade, viagens; a sacola de lanches, quando passávamos horas dentro de um teatro, marcando palco, ensaiando e nos arrumando; as horas de pé no sol, no estacionamento de um shopping ou numa rodoviária de São Paulo; as horas de espera, as horas longe de casa, do meu pai e do meu irmão; aguentar me vendo dormir de collant e meia-calça e comer igual troglodita.
 

E eu nunca tive maturidade suficiente de agradecê-la por tudo; e esse ‘tudo’ é muito, mesmo! Se eu tive experiências incríveis em relação à dança, se eu conheci pessoas que são queridas até hoje, se eu tive a oportunidade de estar em cima de um palco, devo a ela. Também devo ao meu velho, claro! Escolhas e decisões sempre foram feitas em família. Não sei se Luna terá a rotina que tive durante aqueles três anos e, independente das escolhas que ela faça, só espero ter o oportunidade de estar ali, com lanches e amor.

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